ANO SACERDOTAL- Testemunho do Bispo da Prelazia do Xingu Dom Erwin Krautler
As nossas irmãs monjas da Associação São José no boletim nº 39 nos brindaram com o testemunho de vida do bispo da Prelazia do Xingu. É um testemunho da mão amorosa de Deus que sempre envia pessoas para socorrer os menos favorecidos do seu povo. Não podemos deixar de mencionar a experiência que este missionário de Deus tem com nossa irmã Teresinha do Menino Jesus, padroeira da missões. A riqueza deste testemunho fortalece aqueles que estão e os que desejam entrar nesta aventura que servir a Deus.
Segue o texto publicado no boletim:
Queremos neste boletim abrir um espaço cm homenagem aos Sacerdotes, neste Ano Santo dedicado a eles, com o testemunho de D. Erwin Krautkr, Bispo Prelado de Xingu, no Pará. Segue alguns trechos do relato de seu livro Servo de Cristo Jesus,memórias de luta e esperança que muito nos interpela na nossa missão junto aos sacerdotes, principalmente os missionários. Também nos surpreende o amor e a presença de nossa Irmã, Santa Teresinha, se fazendo valer do seu "título" e dever de padroeira das Missões. D, Erwín e Thérèse são dois grandes amigos!
Dou este testemunho com o coração repleto de gratidão. Depois de mais de quarenta anos de vida missionária no Xingu, na Amazônia brasileira, e 28 anos de bispo, confesso que muito devo a Thérèse, nossa Santa Teresinha. Dela não ouvi apenas falar ou li uma biografia. Eu a conheço, como se conhece uma pessoa que se ama imensamente. Há décadas ela caminha comigo nas horas alegres, muito mais ainda nas horas de dor e sofrimento. Sinto sua presença!
Deus se dirige a nós por múltiplas vias. Ele se revela através de suas palavras na Escritura Sagrada. Ele está presente como Deus-conosco na Eucaristia. Às vezes, Deus nos orienta e acompanha através de pessoas queridas que encontramos em nosso dia a dia, mas também por alguém que já está junto de Deus na mansão eterna, especialmente quanto se trata de alguém que antes de morrer garantiu: "Eu quero passar meu céu fazendo o bem sobre a terra". Foi Deus que me enviou Thérèse como um anjo da guarda, como irmã querida que me protege e tantas vezes também me consola
Digo de novo: Conheço Thérèse! Li várias vezes seus escritos, mas também nas entrelinhas. Entendi-a sempre melhor e descobri a mensagem evangélica que transmite ao mundo. Thérèse anunciou o Evangelho através de seu magnífico testemunho. Quando viveu em Lisieux, só as pessoas de sua família e de seu convento a conheceram. Hoje ela é conhecida e venerada pelo mundo afora. Viver e anunciar Evangelho através de nosso testemunho é missão dos cristãos de todos os tempos. Thérèse é missionária, apóstola e mártir do amor.
Meu primeiro contato com Thérèse eu o tive quando ainda era menino em Koblanch, minha aldeia natal na Áustria. Havia uma estátua dela na Igreja Matriz, aquela estátua de gesso que todos nós conhecemos, produzida em série. Thérèse segura a cruz, coberta de rosas. Graças a Deus existia no Carmelo de Lisieux do final do século XIX a máquina fotográfica de Celine para que pudéssemos conhecer o verdadeiro rosto de Thérèse!
Não sei o que aconteceu com a estátua. Desapareceu! Na época da restauração da Igreja Matriz, Thérèse foi pintada, junto com outros santos, num grande afresco no teto da igreja. Alguns meses antes da minha ordenação sacerdotal e primeira Missa que celebraria na igreja em que também fui balizado. Pedi ao artista-pintor que não esquecesse Thérèse. Dei-lhe um santinho para que tivesse uma idéia de como poderia pintá-la- O artista produziu uma linda imagem de Thérèse.
Em 1958, entrei no noviciado dos Missionários do Sangue de Cristo em Schellenberg, no Principado de Líechtensteín. Queria ser padre, missionário. Minha vontade de jovem entusiasta era transformar, converter o mundo, mas não entendia bem o que significava isso. Mesmo sendo estudante, fui membro da Juventude Operária Católica (JOC) da minha paróquia. Queria um mundo justo, fraterno, cristão. Fui um jovem muito ativo. Tocava violão, cantava, fiz teatro, promovi encontros e festas ou fui convidado a cantar em festas ou animar esses encontros de jovens. Quantas noites passei nesses eventos sendo um dos últimos a ir embora! Às vezes fui da festa diretamente à escola, escondendo meu violão em algum lugar para os professores não se darem conta de que chegava de uma festa e não de casa. Uma vez o professor de grego me interpelou: Erwín, quando vais mudar de vida? Respondi: "no próximo outono!" O professor - Deus o tenha! - balançou a cabeça como se quisesse dizer: esse rapaz não tem mais jeito! Está perdido! Entretanto, não havia entendido a minha resposta "no próximo outono". O que falei era verdade. Foi meu último ano de ginásio! Pensei em várias profissões. Um dia queria ser médico, especialmente depois de assistir ao filme "Sauerbruch: esta foi minha vida!", que contava a vida de um famoso cirurgião. Impressionava-me como esse médico ajudava tanta gente. Queria fazer algo assim. Depois pensei em tornar-me professor, pois achava que assim poderia estar mais próximos dos jovens e ajudá-los com mais eficiência, Doía-me no coração ver tantos rapazes e moças, amigas e amigos meus, abandonarem as práticas religiosas e resvalarem para um tremendo indiferentismo ou até perderam a sua fé em Deus. Mas a experiência no JOC finalmente me convenceu de que como padre poderia fazer muito mais. Digo "fazer" porque até então entendia a missão de padre como a de grande artista, animador, coordenador de atividades, encontros, festas e celebrações.
Entrei no noviciado e tive a sorte de ter um excelente mestre de noviços. Só havia um detalhe no noviciado, jamais imaginado por mim: Nada de encontros com jovens ou com quem quer que fosse! Nada de noites de festa, nem sequer de passeios animados! Agora, um rígido horário previa as atividades de cada dia e de toda a semana. Oração, meditação, celebração da Eucaristia, estudo, trabalho manual, silencio e recolhimento! Às vezes, um passeio pêlos bosques ou pelas montanhas. Mas não para passar uma noite em algum albergue cantando, e sim para encher os pulmões com ar puro e não com a fumaça das festas de outrora. Cantamos, sim, mas os salmos. Voltando para a casa de noviciado a ordem foi de dormir cedo, levantar cedo, bem cedo! Essa vida me era tão estranha como se tivesse mudado para outro planeta que se situava numa galáxia a milhões de anos-luz de distância da Terra. E o mestre de noviços percebeu que eu não estava bem. Notou que estava sentindo-me no noviciado como um peixe fora d'água, com saudades do mundo que antes era meu mundo. Um dia ele me chamou e, sem rodeios, disse que estava preocupado comigo e duvidando seriamente da minha vocação para a vida religiosa, para padre. Dizia-me: "há vários caminhos para chegar a Deus e cumprir uma missão. A vida de padre é uma vocação que alguém tem ou não tem, e o noviciado existe para discernir se é este realmente o caminho que Deus escolheu ou não". Baixei a cabeça e não respondi nada. Minha crise se tomou aguda, pois no fundo acreditava que Deus me havia chamado. Afinal, porque cheguei até aqui? Por que nunca, mesmo em meio às turbulências da adolescência e as crises de todo tipo quer qualquer jovem atravessa, nunca abandonei a fé, nunca faltei a uma única Santa Missa aos domingos? Até nas excursões, quando todo mundo se esqueceu do dever dominical, eu consegui achar uma Igreja a para cumprir meu dever de cristão. Por que, na cidade onde estudei, sempre entrei, antes das salas de aulas, numa igreja? Às vezes chegava na hora da comunhão e aí recebia o Corpo de Cristo. Quando o trem atrasava por alguns minutos, chegava na bênção final, mas mesmo assim permanecia por alguns minutos diante do altar de Nossa Senhora. Por que com 16 ou 17 anos as palavras de Santa Teresa d'Ávila me empolgaram tanto? "Nada te turbe, nada te espante. Todo se pasa! Díos no se muda... Solo Dios basta!". Muitas vezes as escrevi num livro "poesia", quando uma amiga ou um amigo me pediu uns versos. Por que Santo Agostinho me impressionou tanto, ainda jovem, com seu "inquietum". Conhecia toda a inquietude, toda a insegurança juvenil, a superficialidade do modo de pensar e agir, e esta palavra me questionou.
Por que Deus me conduziu pela mão e me segurou para não cair na sarjeta, em que tantos jovens caem? Por quê? Por quê? Será que agora este Deus amigo me largou e a vocação que julgava ter não passou de um efêmero romantismo, de um tremendo engano?
Não respondi nada ao mestre de noviços. Senti-me completamente só. Perdido! O que iria responder mesmo? Fiquei calado!
Depois de alguns momentos, o padre retomou a palavra e disse apenas: "Bem, vamos fazer mais uma tentativa! Vou lhe dar um livrinho que talvez o ajude a dar uma guinada em sua vida e, quem sabe, descobrir se tem vocação para a vida religiosa!". Recordo-me vivamente, como se o fato tivesse ocorrido ontem! O padre me entregou um livrinho que na capa tinha a foto de uma atriz que fez o papel de carmelita num filme que, tempos atrás, assistira em Feldkirck, onde estudava. Algumas cenas ficaram bem vivas na minha memória. O sorriso cativante da carmelita! Como amava sua família e, depois de entrar para o convento, as suas irmãs, mesmo as antipáticas! A pobrezinha escarrou sangue na noite da Quinta-feira Santa e não falou nada a ninguém. Morreu prematura, escondida num claustro da França. Chorei convulsivamente no fim daquele filme e procurei esconder-me ao sair do cinema. Não quis mostrar a ninguém que havia chorado. E agora o padre me dá um livrinho com o título 'História de uma alma'. Este também foi o título do filme! Em pouco tempo cheguei à última página, que contou a morte de Thérèse. Recomecei várias vezes a leitura de História de uma alma, pelo menos de algumas passagens. Depois descobri outros escritos dela, tudo de repente me interessava! Descobri o grande amor da minha vida: Thérèse!
Não sei o que aconteceu, mas o mestre de noviços nunca mais voltou a me questionar em relação à minha vocação. Repetiu apenas: "você jamais se arrependerá! Sua vida será linda!".
Passei do noviciado para a universidade cm Salzburg, na Áustria, onde escudei filosofia. Depois cursei Teologia para me preparar ao sacerdócio. Lembro-me de que nos primeiros anos de meus estudos em Salzburg escrevi uma carta ao Carmelo de Lisieux pedindo os “manuscríts autobriographiques”. Não sabia francês, mas fiz uma carta em francês, traduzindo palavra por palavra do jeito que o dicionário indicava. As carmelitas de Lisieux certamente se divertiram com essa carta-pedido redigida num francês tão rude. Mas, para minha surpresa, enviaram-me um exemplar que até hoje guardo comigo. Eu queria os escritos de Thérèse na língua que ela falava! O conteúdo, eu já o conhecia.
Não sei mais a data exata, mas algum tempo antes da minha ordenação sacerdotal descobri uma palavra de Thérèse que nunca mais esqueci. É da poesia '"porque te amo, ó Maria", "amar significa dar tudo dar-se a sim mesmo". Esse verso deu origem ao meu lema de sacerdote, que mandei imprimir na lembrancinha da ordenação. Eis a vida que tento viver até hoje.
Fui ordenado padre em 3 de julho de 1965 na linda catedral de Salzburg, na Áustria.
Em 18 de julho rezei minha primeira missa com o povo da minha aldeia natal. No dia 25 de novembro do mesmo ano já estava em Belém do Pará, no Brasil- Embarquei em Hamburgo, num velho Lloyd alemão de nome 'emsstein'. Quando passamos pela costa da Normandia, lembrei-me de que, a certa distância para lá da praia que avistamos, existia uma cidadezinha chamada Lisieux. Lá viveu e morreu Thérèse. Um dia iria conhecer Lisieux, visitar a terra de Thérèse. Iria celebrar a Santa Missa na capela onde morava antes de entrar no convento, Lês Buíssonnets, iria ficar diante da porta do Carmelo, onde se despediu do pai e pela qual entrou para nunca mais sair.
Pouco depois de chegar a Belém, fui convidado para assistir à tomada de hábito de uma jovem que veio das Filipinas, na Igreja de Santa Teresinha.
Comecei a viver a minha vida de padre na Prelazia do Xingu, a maior circunscrição eclesiástica do Brasil. Fui encarregado de muitos ofícios. Lecionei no único colégio em que se formaram todos os professores primários da região. Visitei comunidades próximas de Altamira, sede da Prelazia, mas também, por semanas, comunidades mais distantes. Descobri que a primeira capela que os Missionários do Sangue de Cristo construíram foi dedicada a Santa Teresinha. Fui encarregado da pastoral do Porto de Vitória (hoje cidade) e da paróquia São Francisco Xavier, distante três horas de barco de Vitória do Xingu. Precisava de um barquinho. Dei-lhe o nome de "Teresinha"! Hoje a paróquia dispõe de um barco maior, mas o nome continua o mesmo. Fiz tantas viagens no "Teresinha"!
Os anos passaram. Em 31 de outubro de 1980, fui chamado pelo Núncio Apostólico. Pediu-me que fosse a Nunciatura quanto antes possível. Embarquei para Brasília sem saber o motivo da viagem. O Núncio D. Carmine Rocco me recebeu no dia 3 de novembro, pouco antes do meio-dia. Foi logo ao assunto e entregou-me uma carta. Insistiu que a lesse imediatamente. Era a nomeação para bispo. Sofri um choque violento! Tremi nas bases! Eu? Por que não outro? O Núncio me explicou que o Santo Padre confiava no meu 'sensus ecciesiae' e que eu deveria aceitar, já que na consulta que havia feito como clero, com religiosas e leigos do Xingu, a indicação caía sobre mim.
Thérèse mais uma vez estava, agora "oficialmente", no meu caminho! Assumi como lema de meu episcopado "Servo de Cristo? Jesus". O povo do Xingu se preparou para o grande dia da minha ordenação episcopal, dia 25 de janeiro de 1981. Fizeram um enorme palco diante da Catedral do Xingu, pois o povo esperado de todas as paróquias jamais iria caber na catedral. O dia 25 amanheceu com chuva. Choveu fortemente a noite inteira, sem interrupção. Os bispos e responsáveis pela liturgia tomaram a decisão de transferir as cerimônias para dentro da catedral. Ainda bem que queriam ouvir também a minha opinião. Respondi: "Será ao ar livre! Já fiz um acordo com Santa Teresinha". Riram de mim, mas aceitaram! Ás sete e meia a chuva parou. Formou-se a procissão até o palco. A cerimônia começou as oito e durou até as dez horas. Mas eu ainda queria algo mais, não, apenas que parasse de chover! Lembrei-me da neve no dia da tomada de hábito de Thérèse. Também eu queria a "delicadeza" de algum sinal. Confiava na palavra de Thérèse de acompanhar minha missão de bispo com seu amor e sua intercessão, mas queria que ela se manifestasse. Pensei simplesmente que as nuvens, mesmo carregadas, poderiam, pelo menos por um minuto, deixar passar alguns raios de sol. Tempo de chuva, nuvens escuras, céu fechado' Como esperar raio de sol? Mas vieram! De repente, pelo espaço de talvez três minutos, alguns raios rasgaram as nuvens e nos saudaram. Sabia que era ela! Thérèse! Logo o céu se fechou de novo. A cerimônia chegou ao fim. A primeira bênção do bispo ordenado! Mal havia terminado de abençoar o povo, o cerimoniário gritou pelo microfone: "lá vem chuva! Procurem abrigo!". Chuvas torrenciais voltaram a cair e não pararam mais até a noite daquele dia da minha ordenação de bispo. Thérèse "cumpriu sua parte" Ela será a padroeira da minha missão episcopal.
Comecei a visitar as comunidades em todas as partes da imensa prelazia. Posso exclamar como São Paulo; "não temos mais morada certa!" (ICor 4,11). Viajo de barco, de jipe, de avião, mas vou também a pé, onde não há estrada nem rio. Aprendi muito e descobri o sofrimento do povo simples.
Numa dessas viagens para as aldeias indígenas, voltando de Tucumã para Altamira, aconteceu um fato que nunca mais esquecerei. Antes de embarcarmos em Tucumã, o bispo-irmão, que também é piloto, me dizia que havia pouco tempo tinha feito em Goiânia uma revisão completa do monomotor. Decolamos rumo a Altamira, à distância de aproximadamente duas horas de vôo. Quando o altímetro indicou uns cinco mil pés, começamos a sobrevoar mata cerrada na região das cabeceiras do rio Bacajá. Olhei para baixo admirando a mata virgem, os ipês em flor. a floresta ainda do mesmo jeito como Deus a plantou. De repente, o motor começou a falhar, a hélice girava cada vez mais devagar, até parar por completo. Olhei para o piloto e notei que ficou assustado, nervoso, pálido. Não falou nada! Estávamos a beira da morte! Mesmo se escapássemos com vida da queda, naquele lugar é inóspito de mata fechada nunca ninguém nos teria achado. Mas essa análise eu só fiz depois. Na hora da morte iminente gritei para Thérèse: "Tu és a padroeira dos missionários! Por favor, mostra-nos agora o que sabes fazer!" Por incrível que pareça, após três minutos, que durou uma eternidade, o motor voltou a funcionar. Do fundo do meu coração, falei: "obrigado, Thérèse! Vou contar este milagre por onde eu andar. Jamais te esquecerei. Subimos a oito mil pés e, bem distante no horizonte, apareceu o majestoso Xingu, com suas cachoeiras, seus lagos e ilhas. Depois de mais meia hora aterrissamos sãos e salvos em Altamira. Contamos o que nos aconteceu em pleno vôo. O mecânico de aviação do Aeroporto de Altamira abriu, então o capo do aviãozinho, e colocando as mãos por cima da cabeça disse; "Meu Deus, vocês estão vivos? O motor está com um tremendo defeito!”. Primeiro gelei, mas logo fiquei com o meu coração em chamas, pois ouvi da boca do mecânico a confirmação de que Thérèse havia operado um milagre!
O Cardeal Aloísio Lorscheider veio até o Xingu para pregar um retiro espiritual, e como eu sabia que meu nome estava sendo cogitado para presidente do Conselho Indigenista Missionário, organismo anexo à CNBB que coordena a nossa atividade pastoral junto aos quase cento e oitenta povos indígenas que ainda existem no Brasil. Perguntei a D. Aloísio o que ele pensava disso e o que eu devia fazer. Ele imediatamente reagiu e disse que deveria aceitar a bem da Igreja no Brasil. Fui eleito e durante oito anos, de 1983 a Í991, exerci o cargo. (...) Não tive mais sossego. Nosso empenho em favor desses povos não agradou a todos, especialmente não recebeu aplausos dos que queriam ocupar as terras indígenas e explorar as riquezas de nossa terra. (...) Em agosto de 1987, um jornal de grande circulação no Brasil iniciou uma virulenta campanha de difamação. Fomos caluniados do modo tão torpe, que nem sequer vale a pena citar as acusações levianas. Imediatamente, foi constituída uma Comissão Parlamentar Interministerial de Inquérito para apurar a veracidade das acusações gravíssimas. A trama foi descoberta, mas nem por isso cessaram as hostilidades. Quando esperava ser chamado a Brasília para me defender diante da Comissão, em nome do Conselho Indigenista Missionário da CNBB, repudiar todas as acusações, aconteceu um acidente na Estrada Transamazônica, Dirigia-me a Brasil Novo, para celebrar a Santa Missa, no Copo da ladeira, meu carro foi propositadamente abalroado por um caminhão. O Pé. Salvador, missionário xaveriano, nascido na Sardenha, de 31 anos, estava sentado ao meu lado e Ceve morre instantânea. Eu quebrei os ossos do nariz e da face, perdi os dentes e fraturei varias costelas, mas escapei com vida. Por seis semanas fiquei hospitalizado. Durante 33 dias só pude alimentar-me através de um canudinho. Minha vida, de repente, entrou numa fase de intenso sofrimento. Passei muitas noites sem dormir e com dor. (...) “no acidente vi a morte diante de mim. Ma s não foi uma pálida caveira. Eu vi a face ensanguentada de Nosso Senhor. A experiência do dia 16 de outubro de 1987 fez-me meditar horas e horas sobre nossa missão e nossas atividades pastorais. Lembrei-me de que o núcleo dos Evangelhos não foram os sermões e os milagres de Nosso Senhor, mas sim a sua Paixão, seu sofrimento, sua morte na cruz, e depois, a alvissareira notícia da manhã da Páscoa; Verdadeiramente o Senhor ressuscitou!
Naqueles dias intermináveis no Hospital Guadalupe, em Belém, Thérèse velava a meu lado! Falei com ela, e ela me ouviu! Meu estado não permitia que rezasse o breviário. Rezei tantos rosários! Quando as dores pareciam insuportáveis, lembrei dos últimos meses de sofrimento de Thérèse, de sua imensa coragem e de sua entrega. Descobri a dimensão do sofrimento. Sofrendo dores atrozes, comecei a compreender Thérèse muito mais do que antes!
Depois de dois meses em Belém, voltei ao Xingu. Aos poucos recuperei as forças e, mesmo com alguma dificuldade no início, voltei a visitar as comunidades ao logo dos rios e igarapés.
Em 1995, na Assembléia Geral da CNBB fui eleito responsável pela Dimensão Missionária da Igreja no Brasil. Esta função exerci também por oito anos, até 2003. E Thérèse novamente me acompanhava. Falei várias vezes ao episcopado brasileiro em que consiste a "missionariedade" de nossa Igreja. Conclamei a Igreja para a missão da Amazônia, que se tornam 'ovelhas sem pastor' porque não há ' missionários suficientes para atendê-las. Minhas palavras aos bispos foram sempre de apelo ao espírito missionário, e Thérèse sempre me inspirou.
Passei, como todos os anos, o Natal e o Ano Novo com as comunidades do Baixo Xingu. Nas longas viagens de barco, li mais uma vez uma meditação de Santa Teresinha que termina com uma alusão á prometida "chuva de rosas". Enquanto viajava pelo maravilhoso Xingu de águas verde-esmeralda, terminei a leitura e pedi a Thérèse que se lembrasse de nossa realidade tão difícil e conflitiva. Falei a ela: "minha querida, está na hora de enviar mais uma rosa!". Quando cheguei em casa, abri a porta de meu quarto e qual foi minha surpresa: ao lado do quadro de Thérèse na estante uma grande e linda rosa vermelha! Nunca antes alguém colocou flores no meu quarto...
Dom Erwin Krautkr, missionário do Sangue de Cristo, nasceu em 1939 em Koblach, Áustria. Há mais de 40 anos trabalha como missionário na Amazônia, é presidente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
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